Resultado de 30 anos de estudos, biografia monumental
reconstrói a vida do filósofo de espírito combativo.
Por REGINA SCHÖPKE
Houve um tempo, não muito distante, em que os filósofos
acreditavam profundamente no poder da razão e, mais ainda, no poder do homem
modificar verdadeiramente as condições de sua existência. Talvez o correto
fosse simplesmente afirmar que houve uma época em que os filósofos acreditavam
mais na própria filosofia - tal como os antigos gregos, que a criaram para
enfrentar os abusos de poder do mundo mágico-religioso e de seus “mestres da
verdade”.
Estamos falando aqui do século 18, que, independentemente do
que se diga, é profundamente essencial para a construção e compreensão do mundo
contemporâneo. Afinal, a luta dos filósofos chamados de iluministas está na
origem de uma das transformações sociais mais radicais de todos os tempos, que
se deu, para o bem e para o mal, com a Revolução Francesa. Para o bem, porque
era impossível aceitar as condições de miséria e exploração em que vivia o
povo; para o mal, porque nenhum filósofo iluminista provavelmente ficaria
satisfeito com os desdobramentos da dita revolução que ansiava pela “liberdade
igualdade e fraternidade”.
Seja como for, o Iluminismo não foi um movimento intelectual
entre outros. De certa maneira, ele foi algo que extrapolou os limites da
língua, dos territórios e até mesmo das classes sociais. Pode-se dizer que os
iluministas eram uma espécie de “grande família”, cujos membros se espalhavam
por vários cantos da Europa e especialmente na França, com Voltaire,
D’Alembert, Rousseau, Barão de Holbach, Diderot, etc. O elo que os ligava era,
mais do que uma crença, uma certeza: a de que alguns valores humanos são
eternos, ainda que não existam por si mesmos. “Eternos” porque, sem eles, o
próprio sonho de ser homem perde o seu sentido.
Kant, uma das personalidades mais ilustres do iluminismo
alemão, deixou-nos uma das melhores definições desse movimento. Para ele, o
Iluminismo representava a emancipação do homem da tutela que ele próprio impôs
a si, ao se deixar dominar pelos outros e não por sua própria razão. “Faça uso
da tua razão!”: eis o lema do Iluminismo para Kant.
Entre os franceses, a questão era a mesma. No entanto, a
ênfase no social e no político soava bem mais forte. Não era por outro motivo
que Voltaire achava inútil qualquer querela metafísica, sem falar em Diderot,
cujo percurso filosófico foi marcado por uma clara e corajosa mudança de
perspectiva, em que o filósofo deísta vai aos poucos se tornando mais cético e
reflexivo, a ponto de aproximar-se mais dos materialistas de seu tempo (algo
que o levou à prisão e lhe valeu uma crítica do próprio Voltaire, que via no
materialismo ateísta um perigo para a sociedade - que, para ele, precisava da
ideia de Deus como sustentáculo dos valores morais).
Diderot não compartilhava desta prevenção com relação aos
ateístas (entre os quais, aliás, dizia se sentir muito bem), mas o canto de
Voltaire atingiu notas mais altas e ressoou com mais intensidade na
“eternidade”. Isto, porém, não impediu que outros cantos também ecoassem, como
o do próprio Diderot, que amava a ficção e o teatro e que dizia que “era tão
arriscado acreditar em tudo como não acreditar em nada” e que “a superstição
ofende mais a Deus do que o ateísmo”. É exatamente essa voz menos “divina” e
talvez, por conta disso, também menos dogmática, que chega até nós por
intermédio de Arthur M. Wilson, em seu monumental Diderot.
Considerada a mais completa e confiável biografia deste
filósofo, o livro de Wilson tem como fonte principal os documentos do próprio
Diderot (suas obras e sua vasta correspondência). É assim que o professor
emérito da Dartmougt College reconstrói a vida de seu personagem numa narrativa
instigante, recheada com citações do próprio filósofo. Sem dúvida, é por ser
uma reconstrução que ela não deixa de ser também uma criação - no melhor
sentido da palavra, já que é impossível capturar inteiramente as nuances e os
devires do instante vivido. Ao biógrafo, no fundo, cabe a tarefa nada pequena
de ligar os pontos (os momentos sempre fugidios) dispersos no tempo, de modo a
produzir uma malha de acontecimentos e sentimentos que faça sentido. E isso,
sem dúvida, Wilson fez com perfeição, seja mostrando o lado de um pai afetuoso
e preocupado com a educação da filha ou o do homem magoado com as leviandades
da amante; seja revelando a relação um tanto fria com Voltaire ou os detalhes
da amizade, posteriormente rompida, com Rousseau - enfim, expondo os percalços,
alegrias e angústias deste homem de espírito combativo e apaixonado (por vezes,
até inflamado) que aprendeu a lidar com o mundo, e sem ser corrompido por ele.
Esta obra, resultado de mais de 30 anos de pesquisas e
estudos, atesta a paixão de Arthur Wilson pelo filósofo, mas também pelo
próprio Iluminismo, que tanto influenciou o espírito norte-americano em sua
luta pela liberdade. Afinal, como disse Voltaire, em uma carta a Diderot:
“Nossa divisa é: sem quartel aos supersticiosos, aos fanáticos, aos ignorantes,
aos loucos, aos perversos e aos tiranos... ou será que nos chamamos de
filósofos para nada?”
Pois bem, falar do Iluminismo é falar de filósofos e
livres-pensadores, de homens que pensam por si, que fazem “uso de sua razão” e
que, por isso mesmo, nem sempre concordam em tudo, embora jamais deixem de
concordar que é necessário empreender uma luta sem trégua contra as trevas do
espírito, contra a ignorância, as superstições, os preconceitos, os dogmas e
tudo o que fere a razão e o bom senso (o que, no fundo, continua sendo a grande
meta da filosofia, a despeito do descrédito atual da razão e do espírito
crítico). O melhor aspecto deste livro, entretanto, é a desmistificação do
caráter destes apologistas da razão. Afinal, longe de defenderem uma razão fria
e insensível, Diderot e seus colegas iluministas têm apenas consciência de que
o homem deve ser governado pela razão, e não por seus medos, desejos e
paixões... Na verdade, a sensualidade e as paixões jamais foram negadas por
Diderot (que, inclusive, as viveu com intensidade). Afinal, como ele próprio
disse: “A razão sem paixões seria quase um rei sem súditos.”
Sem dúvida, os iluministas são devedores de Locke e
Espinosa, mas sua filiação vai ainda mais longe, até Epicuro e Lucrécio.
Afinal, muitos séculos antes dos iluministas, eles já diziam que as crenças
cegas e as superstições nascem da ignorância das leis naturais, da
incompreensão da natureza, e que essa é a forma de manter os homens fracos e
covardes. Aliás, esta é a forma da tirania triunfar, como afirmaram Espinosa e
o próprio Diderot. Por isso mesmo, o grande empreendimento de Diderot foi -
juntamente com D’Alembert - editar a tão conhecida Enciclopédia, o mais
precioso instrumento de divulgação das ideias iluministas. Afinal, como bem nos
mostra Wilson, Diderot acreditava no poder do conhecimento para dissolver os
erros e os preconceitos, e não é por outra razão que a Enciclopédia tinha como
ambição maior reunir todo o saber humano em milhares de verbetes escritos por
filósofos e sábios de todas as áreas. Esse trabalho, que durou mais de 20 anos,
mudou para sempre a história e a feição do conhecimento humano.
Pois bem, repleta de revelações curiosas sobre a vida social
e intelectual do século 18, essa biografia tem também o mérito de mostrar algo
que, em tese, é óbvio, embora não para todos: que os filósofos são seres
humanos, sujeitos a fraquezas e defeitos inerentes a esta condição. Contudo, é
o que eles têm de magnânimo, de grandioso, que precisa ser exaltado, que
precisa servir de exemplo, porque enquanto a maior parte dos homens vive apenas
para os seus próprios interesses e prazeres, alguns escrevem com o seu próprio
sangue e espírito as páginas mais sublimes da história humana.
REGINA SCHÖPKE É FILÓSOFA E MEDIEVALISTA, AUTORA DE MATÉRIA
EM MOVIMENTO E DICIONÁRIO FILOSÓFICO (MARTINS FONTES)
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