Em algum lugar do Oriente Médio, por volta do século 10
a.C., uma pessoa decidiu escrever um livro. Pegou uma pena, nanquim e folhas de
papiro (uma planta importada do Egito) e começou a contar uma história mágica,
diferente de tudo o que já havia sido escrito. Era tão forte, mas tão forte,
que virou uma obsessão. Durante os 1 000 anos seguintes, outras pessoas
continuariam reescrevendo, rasurando e compilando aquele texto, que viria a se
tornar o maior best seller de todos os tempos: a Bíblia. Ela apresentou uma
teoria para o surgimento do homem, trouxe os fundamentos do judaísmo e do
cristianismo, influenciou o surgimento do islã, mudou a história da arte – sem
a Bíblia, não existiriam os afrescos de Michelangelo nem os quadros de Leonardo
da Vinci – e nos legou noções básicas da vida moderna, como os direitos humanos
e o livre-arbítrio. Mas quem escreveu, afinal, o livro mais importante que a
humanidade já viu? Quem eram e o que pensavam essas pessoas? Como criaram o
enredo, e quem ditou a voz e o estilo de Deus? O que está na Bíblia deve ser
levado ao pé da letra, o que até hoje provoca conflitos armados? A resposta
tradicional você já conhece: segundo a tradição judaico-cristã, o autor da
Bíblia é o próprio Todo-Poderoso. E ponto final. Mas a verdade é um pouco mais
complexa que isso.
A própria Igreja admite que a revelação divina só veio até
nós por meio de mãos humanas. A palavra do Senhor é sagrada, mas foi escrita
por reles mortais. Como não sobraram vestígios nem evidências concretas da
maioria deles, a chave para encontrá-los está na própria Bíblia. Mas ela não é
um simples livro: imagine as Escrituras como uma biblioteca inteira, que guarda
textos montados pelo tempo, pela história e pela fé. Aliás, o termo “Bíblia”,
que usamos no singular, vem do plural grego ta biblia ta hagia – “os livros
sagrados”. A tradição religiosa sempre sustentou que cada livro bíblico foi
escrito por um autor claramente identificável. Os 5 primeiros livros do Antigo
Testamento (que no judaísmo se chamam Torá e no catolicismo Pentateuco) teriam
sido escritos pelo profeta Moisés por volta de 1200 a.C. Os Salmos seriam obra
do rei Davi, o autor de Juízes seria o profeta Samuel, e assim por diante.
Hoje, a maioria dos estudiosos acredita que os livros sagrados foram um
trabalho coletivo. E há uma boa explicação para isso.
As histórias da Bíblia derivam de lendas surgidas na chamada
Terra de Canaã, que hoje corresponde a Líbano, Palestina, Israel e pedaços da
Jordânia, do Egito e da Síria. Durante séculos acreditou-se que Canaã fora
dominada pelos hebreus. Mas descobertas recentes da arqueologia revelam que, na
maior parte do tempo, Canaã não foi um Estado, mas uma terra sem fronteiras
habitada por diversos povos – os hebreus eram apenas uma entre muitas tribos
que andavam por ali. Por isso, sua cultura e seus escritos foram fortemente
influenciadas por vizinhos como os cananeus, que viviam ali desde o ano 5000
a.C. E eles não foram os únicos a influenciar as histórias do livro sagrado.
As raízes da árvore bíblica também remontam aos sumérios,
antigos habitantes do atual Iraque, que no 3o milênio a.C. escreveram a Epopéia
de Gilgamesh. Essa história, protagonizada pelo semideus Gilgamesh, menciona
uma enchente que devasta o mundo (e da qual algumas pessoas se salvam
construindo um barco). Notou semelhanças com a Bíblia e seus textos sobre o
dilúvio, a arca de Noé, o fato de Cristo ser humano e divino ao mesmo tempo?
Não é mera coincidência. “A Bíblia era uma obra aberta, com influências de
muitas culturas”, afirma o especialista em história antiga Anderson Zalewsky
Vargas, da UFRGS.
Foi entre os séculos 10 e 9 a.C. que os escritores hebreus
começaram a colocar essa sopa multicultural no papel. Isso aconteceu após o
reinado de Davi, que teria unificado as tribos hebraicas num pequeno e frágil
reino por volta do ano 1000 a.C. A primeira versão das Escrituras foi redigida
nessa época e corresponde à maior parte do que hoje são o Gênesis e o Êxodo.
Nesses livros, o tema principal é a relação passional (e às vezes conflituosa)
entre Deus e os homens. Só que, logo no começo da Beeblia, já existiu uma
divergência sobre o papel do homem e do Senhor na história toda. Isso porque o
personagem principal, Deus, é tratado por dois nomes diferentes.
Em alguns trechos ele é chamado pelo nome próprio, Yahweh –
traduzido em português como Javé ou Jeová. É um tratamento informal, como se o
autor fosse íntimo de Deus. Em outros pontos, o Todo-Poderoso é chamado de
Elohim, um título respeitoso e distante (que pode ser traduzido simplesmente
como “Deus”). Como se explica isso? Para os fundamentalistas, não tem conversa:
Moisés escreveu tudo sozinho e usou os dois nomes simplesmente porque quis. Só
que um trecho desse texto narra a morte do próprio Moisés. Isso indica que ele
não é o único autor. Os historiadores e a maioria dos religiosos aceitam outra
teoria: esses textos tiveram pelo menos outros dois editores.
Acredita-se que os trechos que falam de Javé sejam os mais
antigos, escritos numa época em que a religiosidade era menos formal. Eles
contêm uma passagem reveladora: antes da criação do mundo, “Yahweh não
derramara chuva sobre a terra, e nem havia homem para lavrar o solo”. Essa
frase, “não havia homem para lavrar o solo”, indica que, na primeira versão da
Bíblia, o homem não era apenas mais uma criação de Deus – ele desempenha um papel
ativo e fundamental na história toda. “Nesse relato, o homem é co-criador do
mundo”, diz o teólogo Humberto Gonçalves, do Centro Ecumênico de Estudos
Bíblicos, no Rio Grande do Sul.
Pelo nome que usa para se referir a Deus (Javé), o autor
desses trechos foi apelidado de Javista. Já o outro autor, que teria vivido por
volta de 850 a.C., é apelidado de Eloísta. Mais sisudo e religioso, ele compôs
uma narrativa bastante diferente. Ao contrário do Deus-Javé, que fez o mundo
num único dia, o Deus-Elohim levou 6 (e descansou no 7o). Nessa história, a
criação é um ato exclusivo de Deus, e o homem surge apenas no 6o dia, junto aos
animais.
Tempos mais tarde, os dois relatos foram misturados por
editores anônimos – e a narrativa do Eloísta, mais comportada, foi parar no
início das Escrituras. Começando por aquela frase incrivelmente simples e
poderosa, notória até entre quem nunca leu a Bíblia: “E, no início, Deus criou
o céu e a terra...”
Em 589 a.C., Jerusalém foi arrasada pelos babilônios, e
grande parte da população foi aprisionada e levada para o atual Iraque. Décadas
depois, os hebreus foram libertados por Ciro, senhor do Império Persa – um
conquistador “esclarecido”, que tinha tolerância religiosa. Aos poucos, os
hebreus retornaram a Canaã – mas com sua fé transformada. Agora os sacerdotes
judaicos rejeitavam o politeísmo e diziam que Javé era o único e absoluto deus
do Universo. “O monoteísmo pode ter surgido pelo contato com os persas – a
religião deles, o masdeísmo, pregava a existência de um deus bondoso, Ahura
Mazda, em constante combate contra um deus maligno, Arimã. Essa noção se
reflete até na idéia cristã de um combate entre Deus e o Diabo”, afirma
Zalewsky, da UFRGS.
A versão final do Pentateuco surgiu por volta de 389 a.C.
Nessa época, um religioso chamado Esdras liderou um grupo de sacerdotes que
mudaram radicalmente o judaísmo – a começar por suas escrituras. Eles editaram
os livros anteriores e escreveram a maior parte dos livros Deuteronômio,
Números, Levítico e também um dos pontos altos da Bíblia: os 10 Mandamentos.
Além de afirmar o monoteísmo sem sombra de dúvidas (“amarás a Deus acima de
todas as coisas” é o primeiro mandamento), a reforma conduzida por Esdras
impunha leis religiosas bem rígidas, como a proibição do casamento entre
hebreus e não-hebreus. Algumas das leis encontradas no Levítico se assemelham à
ética moderna dos direitos humanos: “Se um estrangeiro vier morar convosco, não
o maltrates. Ama-o como se fosse um de vós”.
Outras passagens, no entanto, descrevem um Senhor belicoso,
vingativo e sanguinário, que ordena o extermínio de cidades inteiras – mulheres
e crianças incluídas. “Se a religião prega a compaixão, por que os textos
sagrados têm tanto ódio?”, pergunta a historiadora americana Karen Armstrong,
autora de um novo e provocativo estudo sobre a Bíblia. Para os especialistas, a
violência do Antigo Testamento é fruto dos séculos de guerras com os assírios e
os babilônios. Os autores do livro sagrado foram influenciados por essa
atmosfera de ódio, e daí surgiram as histórias em que Deus se mostra bastante
violento e até cruel. Os redatores da Bíblia estavam extravasando sua angústia.
Por volta do ano 200 a.C., o cânone (conjunto de livros
sagrados) hebraico já estava finalizado e começou a se alastrar pelo Oriente
Médio. A primeira tradução completa do Antigo Testamento é dessa época. Ela foi
feita a mando do rei Ptolomeu 2o em Alexandria, no Egito, grande centro
cultural da época. Segundo uma lenda, essa tradução (de hebraico para grego)
foi realizada por 72 sábios judeus. Por isso, o texto é conhecido como
Septuaginta. Além da tradução grega, também surgiram versões do Antigo
Testamento no idioma aramaico – que era uma espécie de língua franca do Oriente
Médio naquela época.
Dois séculos mais tarde, a Bíblia em aramaico estava bombando:
ela era a mais lida na Judéia, na Samária e na Galiléia (províncias que formam
os atuais territórios de Israel e da Palestina). Foi aí que um jovem judeu,
grande personagem desta história, começou a se destacar. Como Sócrates, Buda e
outros pensadores que mudaram o mundo, Jesus de Nazaré nada deixou por escrito
– os primeiros textos sobre ele foram produzidos décadas após sua morte.
E o cristianismo já nasceu perseguido: por se recusarem a
cultuar os deuses oficiais, os cristãos eram considerados subversivos pelo
Império Romano, que dominava boa parte do Oriente Médio desde o século 1 a.C.
Foi nesse clima de medo que os cristãos passaram a colocar no papel as
histórias de Jesus, que circulavam em aramaico e também em coiné – um dialeto
grego falado pelos mais pobres. “Os cristãos queriam compreender suas origens e
debater seus problemas de identidade”, diz o teólogo Paulo Nogueira, da
Universidade Metodista de São Paulo. Para fazer isso, criaram um novo gênero
literário: o evangelho. Esse termo, que vem do grego evangélion (“boa-nova”), é
um tipo de narrativa religiosa contando os milagres, os ensinamentos e a vida
do Messias.
A maioria dos evangelhos escritos nos séculos 1 e 2
desapareceu. Naquela época, um “livro” era um amontoado de papiros avulsos,
enrolados em forma de pergaminho, podendo ser facilmente extraviados e
perdidos. Mas alguns evangelhos foram copiados e recopiados à mão, por membros
da Igreja. Até que, por volta do século 4, tomaram o formato de códice – um
conjunto de folhas de couro encadernadas, ancestral do livro moderno. O
problema é que, a essa altura do campeonato, gerações e gerações de copiadores
já haviam introduzido alterações nos textos originais – seja por descuido, seja
de propósito. “Muitos erros foram feitos nas cópias, erros que às vezes mudaram
o sentido dos textos. Em certos casos, tais erros foram também propositais, de
acordo com a teologia do escrivão”, afirma o padre e teólogo Luigi Schiavo, da
Universidade Católica de Goiás. Quer ver um exemplo?
Sabe aquela famosa cena em que Jesus salva uma adúltera
prestes a ser apedrejada? De acordo com especialistas, esse trecho foi inserido
no Evangelho de João por algum escriba, por volta do século 3. Isso porque, na
época, o cristianismo estava cortando seu cordão umbilical com o judaísmo. E
apedrejar adúlteras é uma das leis que os sacerdotes-escritores judeus haviam
colocado no Pentateuco. A introdução da cena em que Jesus salva a adúltera
passa a idéia de que os ensinamentos de Cristo haviam superado a Torá – e,
portanto, os cristãos já não precisavam respeitar ao pé da letra todos os
ensinamentos judeus.
A julgar pelo último livro da Bíblia cristã, o Apocalipse
(que descreve o fim do mundo), o receio de ter suas narrativas “editadas” era
comum entre os autores do Novo Testamento. No versículo 18, lê-se uma terrível
ameaça: “Se alguém fizer acréscimos às páginas deste livro, Deus o castigará
com as pragas descritas aqui”. Essa ameaça reflete bem o clima dos primeiros
séculos do cristianismo: uma verdadeira baderna teológica, com montes de seitas
defendendo idéias diferentes sobre Deus e o Messias. A seita dos docetas, por
exemplo, acreditava que Jesus não teve um corpo físico. Ele seria um espírito,
e sua crucificação e morte não passariam – literalmente – de ilusão de ótica.
Já os ebionistas acreditavam que Jesus não nascera Filho de Deus, mas fora
adotado, já adulto, pelo Senhor. A primeira tentativa de organizar esse caos
das Escrituras ocorreu por volta de 142 – e o responsável não foi um clérigo,
mas um rico comerciante de navios chamado Marcião.
A Bíblia segundo Marcião
Ele nasceu na atual Turquia, foi para Roma, converteu-se ao
cristianismo, virou um teólogo influente e resolveu montar sua própria seleção
de textos sagrados. A Bíblia de Marcião era bem diferente da que conhecemos
hoje. Isso porque ele simpatizava com uma seita cristã hoje desaparecida, o
gnosticismo. Para os gnósticos, o Deus do Velho Testamento não era o mesmo que
enviara Jesus – na verdade, as duas divindades seriam inimigas mortais. O Deus
hebraico era monstruoso e sanguinário, e controlava apenas o mundo material. Já
o universo espiritual seria dominado por um Deus bondoso, o pai de Jesus. A
Bíblia editada por Marcião continha apenas o Evangelho de João, 11 cartas de
Paulo e nenhuma página do Velho Testamento. Se as idéias de Marcião tivessem
triunfado, hoje as histórias de Adão e Eva no paraíso, a arca de Noé e a
travessia do mar Vermelho não fariam parte da cultura ocidental. Mas, por volta
de 170, o gnosticismo foi declarado proibido pelas autoridades eclesiásticas, e
o primeiro editor da Bíblia cristã acabou excomungado.
Roma, até então pior inimiga dos cristãos, ia se rendendo à
nova fé. Em 313, o imperador romano Constantino se aliou à Igreja. Ele
pretendia usar a força crescente da nova religião para fortalecer seu império.
Para isso, no entanto, precisava de uma fé una e sólida. A pressão de
Constantino levou os mais influentes bispos cristãos a se reunirem no Concílio
de Nicéia, em 325, para colocar ordem na casa de Deus. Ali, surgiu o cânone do cristianismo
– a lista oficial de livros que, segundo a Igreja, realmente haviam sido
inspirados por Deus.
“A escolha também era política. Um grupo afirmou seu poder e
autoridade sobre os outros”, diz o padre Luigi. Esse grupo era o dos cristãos
apostólicos, que ganharam poder ao se aliar com o Império Romano. Os
apostólicos eram, por assim dizer, o “partido do governo”. E por isso definiram
o que iria entrar, ou ser eliminado, das Escrituras.
Eles escolheram os evangelhos de Marcos, Mateus, Lucas e
João para representar a biografia oficial de Cristo, enquanto as invenções dos
docetas, dos ebionistas e de outras seitas foram excluídas, e seus autores
declarados hereges. Os textos excluídos do cânone ganharam o nome de
“apócrifos” – palavra que vem do grego apocrypha, “o que foi ocultado”. A
maioria dos apócrifos se perdeu – afinal de contas, os escribas da Igreja não
estavam interessados em recopiá-los para a posteridade. Mas, com o surgimento
da arqueologia, no século 19, pedaços desses textos foram encontrados nas
areias do Oriente Médio. É o caso de um polêmico texto encontrado em 1886 no
Egito. Ele é assinado por uma certa “Maria” que muitos acreditam ser a
Madalena, discípula de Jesus, presente em vários trechos do Novo Testamento. O
evangelho atribuído a ela é bem feminista: Madalena é descrita como uma figura
tão importante quanto Pedro e os outros apóstolos. Nos primórdios do
cristianismo, as mulheres eram aceitas no clero – e eram, inclusive,
consideradas capazes de fazer profecias. Foi só no século 3 que o sacerdócio
virou monopólio masculino, o que explicaria a censura da apóstola e seu
testemunho. Aliás, tudo indica que Madalena não foi prostituta – idéia que
teria surgido por um erro na interpretação do livro sagrado. No ano 591, o papa
Gregório fez um sermão dizendo que Madalena e outra mulher, também citada nas
Escrituras e essa sim ex-pecadora, na verdade seriam a mesma pessoa (em 1967, o
Vaticano desfez o equívoco, limpando a reputação de Maria).
Na evolução da Bíblia, foram aparecendo vários trechos
machistas – e suspeitos. É o caso de uma passagem atribuída ao apóstolo Paulo:
“A mulher aprenda (...) com toda a sujeição. Não permito à mulher que ensine,
nem que tenha domínio sobre o homem (...) porque Adão foi formado primeiro, e
depois Eva”. É provável que Paulo jamais tenha escrito essas palavras – porque,
na época em que ele viveu, o cristianismo não pregava a submissão da mulher.
Acredita-se que essa parte tenha sido adicionada por algum escriba por volta do
século 2.
Após a conversão do imperador Constantino, o eixo do
cristianismo se deslocou do Oriente Médio para Roma. Só que, para completar a
romanização da fé, faltava um passo: traduzir a palavra de Deus para o latim. A
missão coube ao teólogo Eusebius Hyeronimus, que mais tarde viria a ser
canonizado com o nome de são Jerônimo. Sob ordens do papa Damaso, ele viajou a
Jerusalém em 406 para aprender hebraico e traduzir o Antigo e o Novo
Testamento. Não foi nada fácil: o trabalho durou 17 anos.
Daí saiu a Vulgata, a Bíblia latina, que até hoje é o texto
oficial da Igreja Católica. Essa é a Bíblia que todo mundo conhece. “A Vulgata
foi o alicerce da Igreja no Ocidente”, explica o padre Luigi. Ela é tão
influente, mas tão influente, que até seus erros de tradução se tornaram
clássicos. Ao traduzir uma passagem do Êxodo que descreve o semblante do
profeta Moisés, são Jerônimo escreveu em latim: cornuta esse facies sua, ou
seja, “sua face tinha chifres”. Esse detalhe esquisito foi levado a sério por
artistas como Michelangelo – sua famosa escultura representando Moisés, hoje
exposta no Vaticano, está ornada com dois belos corninhos. Tudo porque Jerônimo
tropeçou na palavra hebraica karan, que pode significar tanto “chifre” quanto
“raio de luz”. A tradução correta está na Septuaginta: o profeta tinha o rosto
iluminado, e não chifrudo. Apesar de erros como esse, a Vulgata reinou absoluta
ao longo da Idade Média – durante séculos, não houve outras traduções.
O único jeito de disseminar o livro sagrado era copiá-lo à
mão, tarefa realizada pelos monges copistas. Eles raramente saíam dos mosteiros
e passavam a vida copiando e catalogando manuscritos antigos. Só que, às vezes,
também se metiam a fazer o papel de autores.
Após a queda do Império Romano, grande parte da literatura
da Antiguidade grega e romana se perdeu – foi graças ao trabalho dos monges
copistas que livros como a Ilíada e a Odisséia chegaram até nós. Mas alguns
deles eram meio malandros: costumavam interpolar textos nas Escrituras Sagradas
para agradar a reis e imperadores. No século 15, por exemplo, monges espanhóis
trocaram o termo “babilônios” por “infiéis” no texto do Antigo Testamento – um
truque para atacar os muçulmanos, que disputavam com os espanhóis a posse da
península Ibérica.
Escrituras em série
Tudo isso mudou após a invenção da imprensa, em 1455. Agora
ninguém mais dependia dos copistas para multiplicar os exemplares da Bíblia.
Por isso, o grande foco de mudanças no texto sagrado passou a ser outro: as
traduções.Em 1522, o pastor Martinho Lutero usou a imprensa para divulgar em massa
sua tradução da Bíblia, que tinha feito direto do hebraico e do grego para o
alemão. Era a primeira vez que o texto sagrado era vertido numa língua moderna
– e a nova versão trouxe várias mudanças, que provocavam a Igreja (veja quadro
na pág. 65). Logo depois um britânico, William Tyndale, ousou traduzir a Bíblia
para o inglês. No Novo Testamento, ele traduziu a palavra ecclesia por
“congregação”, em vez de “igreja”, o termo preferido pelas traduções católicas.
A mudança nessa palavrinha era um desafio ao poder dos papas: como era
protestante, Tyndale tinha suas diferenças com a Igreja. Resultado? Ele foi
queimado como herege em 1536. Mas até hoje seu trabalho é referência para as
versões inglesas do livro sagrado.
A Bíblia chegou ao nosso idioma em 1753 – quando foi
publicada sua primeira tradução completa para o português, feita pelo
protestante João Ferreira de Almeida. Hoje, a tradução considerada oficial é a
feita pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e lançada em 2001.
Ela é considerada mais simples e coloquial que as traduções anteriores. De lá
para cá, a Bíblia ganhou o mundo e as línguas. Já foi vertida para mais de 300
idiomas e continua um dos livros mais influentes do mundo: todos os anos, são
publicadas 11 milhões de cópias do texto integral, e 14 milhões só do Novo
Testamento.
Depois de tantos séculos de versões e contra-versões, ainda
não há consenso sobre a forma certa de traduzi-la. Alguns buscam traduções mais
próximas do sentido e da época original – como as passagens traduzidas do
hebraico pelo lingüista David Rosenberg na obra O Livro de J, de 1990. Outros
acham que a Bíblia deve ser modernizada para atrair leitores. O lingüista
Eugene Nida, que verteu a Bíblia na década de 1960, chegou ao extremo de
traduzir a palavra “sestércios”, a antiga moeda romana, por “dólares”. Em 2008,
duas versões igualmente ousadas estão agitando as Escrituras: a Green Bible
(“Bíblia Verde”, ainda sem versão em português), que destaca 1 000 passagens
relacionadas à ecologia – como o momento em que Jó fala sobre os animais –, e a
Bible Illuminated (‘Bíblia Iluminada”, em inglês), com design ultramoderno e
fotos de celebridades como Nelson Mandela e Angelina Jolie.
A Bíblia se transforma, mas uma coisa não muda: cada pessoa,
ou grupo de pessoas, a interpreta de uma maneira diferente – às vezes, com
propósitos equivocados. Em pleno século 21, pastores fundamentalistas tentam
proibir o ensino da Teoria da Evolução nas escolas dos EUA, sendo que a própria
Igreja aceita as teorias de Darwin desde a década de 1950. Líderes como o
pastor Jerry Falwell defendem o retorno da escravidão e o apedrejamento de
adúlteros, e no Oriente Médio rabinos extremistas usam trechos da Torá para
justificar a ocupação de terras árabes. Por quê? Porque está na Bíblia, dizem
os radicais. Não é nada disso. Hoje, os principais estudiosos afirmam que a
Bíblia não deve ser lida como um manual de regras literais – e sim como o
relato da jornada, tortuosa e cheia de percalços, do ser humano em busca de
Deus. Porque esse é, afinal, o verdadeiro sentido dessa árvore de histórias
regada há 3 mil anos por centenas de mãos, cabeças e corações humanos: a crença
num sentido transcendente da existência.
Top 5 pragas
I. Quando os hebreus eram escravos no Egito, o Senhor enviou
10 pragas contra os opressores do povo escolhido. A primeira delas foi
transformar toda a água do país em sangue (Êxodo 7:21).
II. Como o faraó não libertava os hebreus, o Senhor
radicalizou: matou, numa só noite, todos os primogênitos do Egito. “E houve
grande clamor no país, pois não havia casa onde não houvesse um morto” (Êxodo
12:30).
III. Desgostoso com os pecados de Sodoma e Gomorra, Deus
destruiu as duas cidades com uma chuvarada de fogo e enxofre (Gênesis 19:24).
IV. Para punir as desobediências do rei Davi, o Senhor
enviou uma doença não identificada, que matou 70 mil homens e 200 mil mulheres
e crianças (2 Samuel, 24: 1-13).
V. Quando a nação dos filisteus roubou a arca da Aliança,
onde estavam guardados os 10 Mandamentos, o Senhor os castigou com um surto de
hemorróidas letais. “Os intestinos lhes saíam para fora e apodreciam” (1 Samuel
5:9) .
Os possíveis autores
1200 a.C. - Moisés
Segundo uma lenda judaica, a Torá (obra precursora da
Bíblia) teria sido escrita por ele. Mas há controvérsias, pois existe um trecho
da Torá que diz: “Moisés morreu e foi sepultado pelo Senhor próximo a Fegor”.
Ora, se Moisés é o autor do texto, como ele poderia ter relatado a própria
morte?
1000 a.C. - Javista
Viveu na corte do rei Davi, no antigo reino de Israel, e era
um aristocrata. Ou, quem sabe, uma aristocrata: para o crítico Harold Bloom,
Javista era mulher. Isso porque os personagens femininos da Bíblia (Eva e Sara,
por exemplo) são muito mais elaborados que os masculinos.
Século 4 a.C. - Esdras
Líder religioso que reformou o judaísmo e possível editor do
Pentateuco (5 primeiros livros da Bíblia). Vários trechos bíblicos editados por
ele pregam a violência: “Derrubareis todos os altares dos povos que ides
expropriar, queimareis as casas, e mudareis os nomes desses lugares”.
Século 1 - Paulo
Nunca viu Cristo pessoalmente, mas foi o primeiro a escrever
sobre ele. Nascido na Turquia, Paulo viajou e fundou igrejas pelo Oriente
Médio. Ele escrevia cartas para essas igrejas, contando a incrível aventura de
um tal Jesus – que foi crucificado e ressuscitou.
Século 1 - Maria Madalena
Estava entre os discípulos favoritos de Jesus – e,
diferentemente do que o Vaticano sustentou durante séculos, nunca foi prostituta.
Pelo contrário: tinha influência no cristianismo e é a suposta autora do
Apócrifo de Maria, um livro em que fala sobre sua relação pessoal com Jesus e
divulga os ensinamentos dele.
Século 1 - João
Escreveu o 4o evangelho do Novo Testamento (João) e o Livro
do Apocalipse, o último da Bíblia. Para ele, Jesus não é apenas um messias – é
um ser sobrenatural, a própria encarnação de Deus. Essa interpretação mística
marca a ruptura definitiva entre judaísmo e fé cristã.
Século 5 - Jerônimo
Nascido no território da atual Hungria, este padre foi
enviado a Jerusalém com uma missão importantíssima: traduzir a Bíblia do grego
para o latim. Cometeu alguns erros, como dizer que o profeta Moisés tinha
chifres (uma confusão com a palavra hebraica karan, que na verdade significa
“raio de luz”).
Século 16 - William Tyndale
Possuir trechos da Bíblia em qualquer idioma que não fosse o
latim era crime. O professor Tyndale não quis nem saber, traduziu tudo para o
inglês, e acabou na fogueira. Mas seu trabalho foi incrivelmente influente: é a
base da chamada “Bíblia do Rei James”, até hoje a tradução mais lida nos países
de língua inglesa.
Top 5 matanças
I. Um grupo de meninos malcriados zombou da calvície do
profeta Eliseu. Pra quê! Na hora, dois ursos famintos saíram de um bosque e
comeram as crianças (2 Reis 2:24).
II. Cercado por um exército de filisteus, o herói Sansão
apanhou a mandíbula de um jumento morto. Usando o osso como arma, ele massacrou
mil inimigos (Juízes, 15:16).
III. O profeta Elias convidou os sacerdotes do deus Baal
para uma competição de orações. Era uma armadilha: Elias incitou o povo, que
linchou os pagãos (1 Reis 18:40).
VI. Os judeus haviam perdido a fé e começaram a adorar um
bezerro de ouro. Moisés ficou furioso e mandou sacerdotes levitas matar 3 mil
infiéis (Êxodo 32:19).
V. A nação dos amalequitas disputava o território de Canaã
com os judeus. O Senhor ordena que todos os amalequitas sejam chacinados (1
Samuel 15:18).
Top 5 satanagens
I. Após a destruição de Sodoma, os únicos sobreviventes eram
Ló e suas duas filhas. As filhas de Lot embebedaram o pai e tiveram com ele a
noite mais incestuosa da Bíblia (Gênesis 19:31).
II. O Cântico dos Cânticos, atribuído ao rei Salomão, é
altamente erótico. Um dos trechos: “Teu corpo é como a palmeira, e teus seios,
como cachos de uvas” (Cânticos 7:7).
III. Os anjos do Senhor tiveram chamegos ilícitos com
mulheres mortais. “Vendo os Filhos de Deus que as filhas dos homens eram
formosas, tomaram-nas como mulheres, tantas quanto desejaram” (Gênesis 6:2).
IV. A Bíblia diz que os antigos egípcios eram muito
bem-dotados. Após a fuga para Canaã, a judia Ooliba tem saudades dos tempos em
que se prostituía no Egito. Tudo porque “seus amantes (...) ejaculavam como
cavalos” (Ezequiel 23:20).
V. O hebreu Onã casou com a viúva de seu irmão, mas não
conseguia fazer sexo com ela – preferia o prazer solitário. Do nome dele vem o
termo “onanismo”, que significa masturbação (Gênesis 38:9).
As história da história
Como o livro sagrado evoluiu ao longo dos tempos
Tanach - Século 5 a.C.
É a Bíblia judaica, e tem 3 livros: Torá (palavra hebraica
que significa “lei”), Nebiim (“profetas”) e Ketuvim (“escritos”). É parecida
com a Bíblia atual, pois os católicos copiaram seus escritos. Contém as
sementes do monoteísmo e da ética religiosa, mas também pregações de violência.
A primeira das bíblias tem trechos ambíguos e misteriosos – algumas passagens
dão a entender que Javé não é o único deus do Universo.
Septuaginta - Século 3 a.C.
O Oriente Médio era dominado pelos gregos e pelos
macedônios. Muitos judeus viviam em cidades de cultura grega, como Alexandria,
e desejavam adaptar sua religião aos novos tempos. Diz a lenda que Ptolomeu,
rei do Egito, reuniu um grupo de 72 sábios judeus para traduzir a Tanach – e
fizeram tudo em 72 dias. Por isso, o resultado é conhecido como Septuaginta.
Inclui textos que não constam da Tanach.
Novo Testamento - Século 1
A língua do Antigo Testamento é o hebraico, mas o Novo
Testamento foi escrito num dialeto grego chamado coiné. Contém os relatos sobre
vida, milagres, morte e ressurreição de Jesus – os evangelhos. Em alguns
trechos, vai deixando evidente a divergência entre cristianismo e judaísmo. É o
caso, por exemplo, do Evangelho de João, em que Jesus é descrito como uma
encarnação de Deus (coisa na qual os judeus não acreditavam).
Católica - Século 4
Seus autores decidiram incluir 7 livros que os judeus não
reconheciam. São os chamados Deuterocanônicos: Tobias, Judite, Sabedoria,
Eclesiástico, Baruque, Macabeus 1 e 2 (mais trechos dos livros Daniel e Ester).
A Bíblia católica bate na tecla do monoteísmo: a palavra hebraica Elohim, usada
na Tanach para designar a divindade, é o plural de El, um deus cananeu. Mas foi
traduzida no singular e virou “Senhor”.
Ortodoxa - Por volta do século 4
É baseada na Septuaginta, mas também inclui livros
considerados apócrifos por católicos e protestantes: Esdras 1, Macabeus 3 e 4 e
o Salmo 151. A tradução é mais exata (nesta Bíblia, Moisés nunca teve chifres,
um erro de tradução introduzido pela Bíblia latina), e os escritos não são
levados ao pé da letra: para os ortodoxos, o que conta são as interpretações do
texto bíblico, feitas por teólogos ao longo dos séculos.
Protestante - Século 16
Ao traduzir a Bíblia para o alemão, Martinho Lutero excluiu
os livros Deuterocanônicos e mudou algumas coisas. Um exemplo é a palavra grega
metanoia, que na Bíblia católica significa “fazer penitência” – uma referência
à confissão dos pecados, um dos sacramentos católicos. Já Lutero traduziu
metanoia como “reviravolta”. Para ele, confessar os pecados era inútil. O
importante era transformar a vida pela fé.
Top 5 milagres
I. O maior de todos os milagres divinos foi o primeiro: a
Criação do mundo, pelo poder da palavra. “E Deus disse: que haja luz. E houve
luz” (Gênesis 1:3).
II. Para dar-lhe uma amostra de seus poderes, o Senhor leva
Ezequiel a um campo cheio de esqueletos – e os traz de volta à vida. “O vento
do Senhor soprou neles, e viveram” (Ezequiel, 37; 1-28).
III. Graças à benção divina, o herói Sansão tinha a força de
muitos homens. Certa vez, foi atacado por um leão. “O espírito do Senhor
deu-lhe poder, e Sansão destroçou a fera com as próprias mãos, como se matasse
um cabrito” (Juízes 14:6).
IV. Josué liderava uma batalha contra os amalequitas, mas o
Sol estava se pondo. Como não queria lutar no escuro, o hebreu pediu ajuda
divina – e o Sol ficou no céu (Josué 10:13).
V. Para fugir do Egito, os hebreus precisavam atravessar o
mar Vermelho. E não tinham navios. Moisés ergueu seu bastão e as águas do mar
se dividiram. Após a passagem dos hebreus, o profeta deixou que as ondas se
fechassem sobre os exércitos do faraó (Êxodo 14; 21-30).
Para saber mais
A Bíblia: Uma Biografia
Karen
Armstrong, Jorge Zahar Editora, 2007.
Who Wrote
the Bible?
Richard Elliott Friedman, HarperOne, 1997.
fonte : http://super.abril.com.br/religiao/quem-escreveu-biblia-447888.shtml
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