Noé (Nôach), foi um desses heróis. Erich Auerbach, no seu
"Mímesis", afirma que Deus testa seus heróis e heroínas, levando-os
ao limite do insuportável, para que, sobrevivendo ao teste, descubram por que
foram eleitos. Deus funda, assim, a ideia de autoconhecimento na literatura
ocidental.
"E os que vieram, macho e fêmea, de toda criatura
vieram, como Deus lhe havia ordenado; e o Eterno o fechou para protegê-lo. E
foi o dilúvio quarenta dias sobre a terra, e multiplicaram-se as águas, e
alcançaram a arca, e levantou-se de sobre a terra" (Gênesis, 7; 16-17,
edição hebraica).
O filme "Noé", de Darren Aronofsky, é sobre
eleição. "Eleição" é um conceito, muitas vezes, pouco compreendido
pelo mundo contemporâneo, maníaco por felicidade "projetos do self" e
sucesso.
Os eleitos pelo Deus de Israel só têm problemas; a solidão
os assola, o medo e o sofrimento os persegue. Erich Auerbach entende muito mais
de "eleição" na literatura israelita do que muito rabino, pastor e
padre por aí, obcecados por vender autoajuda espiritual. "Dificilmente, um
deles não sofre, como Adão, a mais profunda humilhação...", afirma
Auerbach.
O diretor do filme, faz licenças poéticas, e algumas delas
(não tenho como saber o quão consciente ele estava quando as fez) muito
sofisticadas, levando em conta a "dramaturgia" do Velho Testamento,
como falam os cristãos quando se referem à Bíblia hebraica.
Uma delas, muito pontual, é o uso da pequena tira de couro
que o pai de Noé, e depois o próprio, enrola no braço: uma referência direta ao
"tefilin" (filactério). A palavra hebraica tem sua raiz em
"tefilá", que significa prece. Hoje, ela "virou" um cordão
de couro ligado a duas caixinhas que o judeu amarra daquele jeito e também na
cabeça (é bem maior do que mostra o filme).
Uma das preces ali contidas é o famoso "Shemá
Israel", a qual lembra aos judeus que Deus é um só: "Shemá Israel,
Adonai eloheinu, Adonai echad" (Ouve Israel, Adonai é nosso D'us, Adonai é
Um"), na tradução feita pelo movimento religioso judaico Chabab.
Outra liberdade de roteiro está na longa discussão acerca
das mulheres e da infertilidade da personagem que casará com Sem, filho mais
velho de Noé. Na narrativa bíblica sobre o dilúvio não existe esta controvérsia
que domina o filme. Sem, Cam e Jafé, filhos de Noé, já entram na arca com suas
mulheres.
Mas, se para o homem bíblico o drama é o coração reto que
serve a Deus, para a mulher, o drama é a fertilidade. Muitos criticam esse
enfoque porque entendem que o homem tem um drama moral acerca da liberdade da
vontade (tema muito bem trabalhado no filme) e a mulher tem um drama
"fisiológico", portanto, alheio à liberdade.
Mas, ao enfrentar o mal da infertilidade e ao ser objeto de
milagre (como no filme e em vários casos na Bíblia), a mulher revela sua
vocação de ser a (desesperada) terra (in)fértil onde Deus deixa sua marca.
O medo da infertilidade no mundo semítico antigo acompanha
muitas heroínas, como Sara, mulher de Abraão, e Rachel, mulher preferida de
Jacó (mais tarde, chamado Israel, pai das 12 tribos).
O profeta Isaías, 54:1-55:5, compara as agonias e
posteriores alegrias da mulher infértil (ou desamparada ou solitária) às águas
de Noé: "Canta, ó estéril que não deste à luz; rompe em cânticos, e clama
com alegria, tu que não tiveste dores de parto; porque mais serão os filhos da
mulher solitária do que os da casada, diz o Eterno".
Adiante, o profeta compara a promessa de Deus a Noé, de que
não mais lançará águas sobre a face da terra, com a promessa feita à infeliz de
que Ele não terá mais ira contra sua revolta nem a repreenderá.
Sabe-se que Deus escolhe Rachel como a que
"amolece" Seu coração, quando Ele fica irritado com o povo israelita.
Está aí o mistério da dor feminina que encanta até o Eterno.
Quando você ouvir alguém dizer que a Bíblia é um livro bobo,
saiba que você está diante de um ignorante. Bom final de semana.
Por Luiz Felipe Pondé.
Nenhum comentário:
Postar um comentário